Gostava de ser uma única coisa,
De uma única forma,
E sempre igual,
Tal e qual.
Sem espaços para hesitações.
De uma única forma,
E sempre igual,
Tal e qual.
Sem espaços para hesitações.
Gostava de não comprar roupa,
Apenas substituir peças.
Assim não me enganava nas cores
Nem perdia tempo no armário.
Era tão cómodo!
A qualquer indignação por esta minha obsessão
Respondia com rigor:
- Sou assim, senhor,
Sou sempre assim.
Não há que enganar,
Nem que reclamar.
Era tão fácil!
À segunda-feira colocava a cara de sair para o trabalho,
O penteado com risco à esquerda, sem pontas a cair desordenadas.
Era assim até sexta-feira à tarde, sempre da mesma forma.
Sem esquiço de sentimento, nem o rasgo de um lamento,
Apenas aquela farda e um sorriso amarelo,
Como convém no local onde se trabalha.
Nada de risadas e palhaçadas.
Tudo muito sério, certo e sem erros ou reformulações.
À sexta-feira à tarde vestia o fato de ir às compras sempre com a mesma lista,
Nem um bago de uva comprava, caso não estivesse no papel.
No sábado cozia as meias e varria os terraços,
No domingo rezava e lavava a alma nas mãos de um prior qualquer.
Como era simples ser singela e previsível,
Impossível de me lerem qualquer desatenção
Ou atrapalhação.
Como era simples e adorável,
Ter uma vida imaculada,
Sempre a meio de tudo e sem excessos.
Sentar-me diligente na secretária vazia e sem trabalho distribuído,
E dar graças ao Estado de Graça que me alimenta,
E deposita, no dia 23, o valor inteiro de cada mês,
Caso o dia 23 não calhe ao fim-de-semana ou em qualquer feriado
Santificado ou não,
Pois, aí, o pagamento é antecipado,
Mesmo para os que nada produzem, mas reluzem.
Sim, porque os vejo passar por mim
Muito emproados, cheios de coisas para fazer,
Assim do género de preencher boletins itinerários,
Para engordar os salários que o governo anda a cortar,
Logo eu que odeio boletins itinerários e salafrários.
Ai quem me dera ser pura e não ter este feitio defeituoso
De ver, ao pormenor, que era muito melhor não ver,
Nem ouvir, nem sentir o cheiro putrefacto da nação,
Estragada pelos especialistas e pelas comissões de avaliação.
Ai meu Deus, prendei-me este clamor.
Que quando me faltam as peças fico mesmo sem elas,
Não as substituo,
E muitas vezes me tem faltado o tom certo no casaco
Cansado de não se rasgar e dizer basta.
Gostava mesmo de ser uma única coisa,
Compassiva.
Mas dentro de mim há demónios à solta
Que já não consigo prender.
Querem avançar, reclamar, trabalhar,
E eu que gostava tanto de ser uma única coisa,
Compassiva, já disse!
Era mais simples que barafustar, bufar e estrebuchar.
Era mais simples e eu podia sê-lo.
Podia até nem fazer nada.
Mas os demónios vigorosos dentro de mim,
Querem destruir toda a fachada,
E são mais fortes que este meu desejo
De vestir o fato de ir às compras sempre com a mesma lista.
Apenas substituir peças.
Assim não me enganava nas cores
Nem perdia tempo no armário.
Era tão cómodo!
A qualquer indignação por esta minha obsessão
Respondia com rigor:
- Sou assim, senhor,
Sou sempre assim.
Não há que enganar,
Nem que reclamar.
Era tão fácil!
À segunda-feira colocava a cara de sair para o trabalho,
O penteado com risco à esquerda, sem pontas a cair desordenadas.
Era assim até sexta-feira à tarde, sempre da mesma forma.
Sem esquiço de sentimento, nem o rasgo de um lamento,
Apenas aquela farda e um sorriso amarelo,
Como convém no local onde se trabalha.
Nada de risadas e palhaçadas.
Tudo muito sério, certo e sem erros ou reformulações.
À sexta-feira à tarde vestia o fato de ir às compras sempre com a mesma lista,
Nem um bago de uva comprava, caso não estivesse no papel.
No sábado cozia as meias e varria os terraços,
No domingo rezava e lavava a alma nas mãos de um prior qualquer.
Como era simples ser singela e previsível,
Impossível de me lerem qualquer desatenção
Ou atrapalhação.
Como era simples e adorável,
Ter uma vida imaculada,
Sempre a meio de tudo e sem excessos.
Sentar-me diligente na secretária vazia e sem trabalho distribuído,
E dar graças ao Estado de Graça que me alimenta,
E deposita, no dia 23, o valor inteiro de cada mês,
Caso o dia 23 não calhe ao fim-de-semana ou em qualquer feriado
Santificado ou não,
Pois, aí, o pagamento é antecipado,
Mesmo para os que nada produzem, mas reluzem.
Sim, porque os vejo passar por mim
Muito emproados, cheios de coisas para fazer,
Assim do género de preencher boletins itinerários,
Para engordar os salários que o governo anda a cortar,
Logo eu que odeio boletins itinerários e salafrários.
Ai quem me dera ser pura e não ter este feitio defeituoso
De ver, ao pormenor, que era muito melhor não ver,
Nem ouvir, nem sentir o cheiro putrefacto da nação,
Estragada pelos especialistas e pelas comissões de avaliação.
Ai meu Deus, prendei-me este clamor.
Que quando me faltam as peças fico mesmo sem elas,
Não as substituo,
E muitas vezes me tem faltado o tom certo no casaco
Cansado de não se rasgar e dizer basta.
Gostava mesmo de ser uma única coisa,
Compassiva.
Mas dentro de mim há demónios à solta
Que já não consigo prender.
Querem avançar, reclamar, trabalhar,
E eu que gostava tanto de ser uma única coisa,
Compassiva, já disse!
Era mais simples que barafustar, bufar e estrebuchar.
Era mais simples e eu podia sê-lo.
Podia até nem fazer nada.
Mas os demónios vigorosos dentro de mim,
Querem destruir toda a fachada,
E são mais fortes que este meu desejo
De vestir o fato de ir às compras sempre com a mesma lista.
Autora: Fátima Marinho
Podem ver o poema no site www.fatimamarinho.com. Podem comentar e partilhar.